Olhares: InteligênciaS - Parte (2/3)

O que é inteligência? Como a psicologia e a neuropsicologia podem contribuir para essa conversa?

Gabriella Macedo

9 min read

Superdotação: presente ou problema?

1. Inteligência acima da média? Do que se trata a superdotação?

Daniel: Uma coisa importante a se dizer é que, por exemplo, os testes usados na neuropsicologia no Brasil utilizam escalas de inteligência como as escalas Wechsler, WISC-IV, WASI, WAIS, etc. Essas escalas, na verdade, têm como parâmetro de medição o conhecimento acadêmico. Então, há muita discussão sobre como medir a inteligência aqui, porque, primeiro, são escalas pensadas para o público dos Estados Unidos e, para serem usadas aqui, precisamos adaptá-las. No entanto, elas não foram pensadas prioritariamente para o brasileiro, mas sim para o americano, e depois adaptadas para o brasileiro. Só que esses testes, essa forma de mensuração, não levam em consideração o estilo de vida das pessoas, apenas a questão acadêmica. Agora, quando falamos de inteligência acima da média, se pegarmos uma pessoa do Brasil que passou por essa avaliação e denota-se que ela teve uma resposta, uma conclusão acima da média das pessoas, ou seja, se ela conseguiu ter um desempenho maior em questão de abstração e velocidade, ela é considerada acima da média mesmo. Há até uma discussão, acredito, não tenho certeza, acho que você pode completar, que é sobre ter o QI acima de 130, né? Quando se trata de superdotação, o que eles percebem? Que o raciocínio principalmente dessas pessoas é muito rápido. E há uma questão realmente de abstração, que é também muito diferente das pessoas típicas. Há também uma teoria da superdotação, que é a teoria da tríade. Então, para você ser considerada uma pessoa com superdotação, você tem que ter habilidades acima da média, uma questão de criatividade e envolvimento com a tarefa. Por exemplo, às vezes você vai passar um teste para uma pessoa e ela tem uma habilidade acima da média, é criativa nas respostas, mas fica desengajada, não quer fazer aquilo. Então, para você entrar nisso (na teoria da tríade), você pode ser sim uma pessoa com habilidade acima da média, ser criativa e ter um envolvimento com a tarefa, ou seja, estar engajado com aquilo que está fazendo. Para ser considerado, você tem que ter essas três coisas que diferenciam.

Gabriella: Sim, e tem aquela questão do QI também, né? Que seria esse coeficiente de inteligência que é medido através de todos esses testes que estávamos conversando agora há pouco. E aí tem aquela questão do corte de 130 pontos no QI. QI é um indicador, mas não é o único. Ter o QI de 130 ou mais não significa necessariamente ter superdotação.

Daniel: Isso mesmo. Mas há uma discussão sobre os testes usados aqui no Brasil, porque são testes simples e válidos, mas, no final das contas, você termina e ele só dá um número. E aí cabe à competência da avaliação do neuropsicólogo ver coisas que não podem ser mensuradas por meio desses testes. Interpretar o que foi mensurado, mas só aquilo não é suficiente. Por exemplo, o próprio WISC-IV, que é o mais comum, tem, não me lembro no momento se são 8 ou 9 composições de fatores, incluindo fator geral e fator específico. Mas, somando e fazendo os cálculos de psicometria, dá o tal do fator G, o coeficiente de inteligência. A própria bateria do Woodcock-Johnson, que o pessoal está trabalhando para adaptar para o Brasil, também é uma bateria padrão ouro, tal qual o WISC-IV, mas tem 42 medidas relacionadas a amplas habilidades. Em questão de mensuração e dados, sabemos hoje em dia, até com as redes sociais, que quanto mais dados você tem sobre uma pessoa, melhor para identificar os potenciais dela. Então, se você levar em consideração que tem 42 medidas, ou seja, 42 testes nessa bateria, os resultados vão ser muito mais sensíveis, né? E você vai saber muito mais sobre aquela pessoa em dados psicométricos mesmo, com mais conteúdo para análise do profissional.


Gabriella: Muito interessante! Eu acho que isso integra um pouco do que a gente vinha falando no começo, dessa dificuldade de, de fato, definir o que é inteligência, né? Então, quando pensamos nessa inteligência acima da média, estamos fazendo uma comparação com a população em geral e pensando em pessoas que têm um desempenho acima dessa faixa que seria esperada para a idade ou para aquela população. Só que isso também é passível de debate.

Daniel: Cabe discussão. Porque, querendo ou não, todo mundo realmente sofre com alguma dificuldade. Há coisas em que você pode não ser muito bom, e essa ideia, por exemplo, de que uma pessoa tenha altas habilidades, às vezes vem agregada à ideia de que aquela pessoa não vai ter problemas na vida. Os outros podem pensar que ela nunca vai ter problema na vida: “ele vai passar por isso sem dificuldade, porque ele é inteligente”. E não é bem assim, né? Porque, pensa… Tá, ele conseguiu ir bem numa escala de inteligência em padrão acadêmico, certo? Mas existem outros tipos de inteligência, outros tipos de contexto, né? Voltando ao exemplo da natureza, que estávamos falando sobre os animais. Se você pegar um peixe e tentar fazer ele subir uma árvore, vamos dizer que ele não consegue, que ele é limitado, que não é tão inteligente assim. Colocamos muitas limitações, mas não consideramos o contexto em que ele está inserido, e acredito que o mesmo acontece com as pessoas. Então, você está avaliando o contexto acadêmico e, de repente, em outro contexto, essa pessoa não tenha esse desempenho e talvez não consiga manter essa tríade que estávamos falando. Ela pode ter muita dificuldade. Há muitos exemplos de diagnóstico quando há um quadro de dupla excepcionalidade, ou seja, tem um diagnóstico e também tem superdotação. Já ouvi relatos de pessoas falando: “como posso ter superdotação se não sei nem olhar as horas no relógio?”. E é uma questão nesses casos onde uma coisa compensa outra. Uma habilidade compensa um déficit. Mas essa questão das altas habilidades não está presente em tudo na vida da pessoa. Acho que é importante deixar isso claro.


Gabriella: Sim, com certeza, e acho que isso já nos dá um gancho para puxar a próxima pergunta, que é justamente sobre isso.

2. É muito comum escutarmos comentários sobre pessoas com altas habilidades/superdotação, como se o fato de possuí-las fosse uma benção, algo unicamente bom, um presente, porém, também é sabido que existem muitas ressalvas antes de se concordar com essa afirmação. O que você pode nos dizer sobre isso?

Daniel: Sobre as bênçãos?

Gabriella: Não, sobre os prejuízos mesmo.


Daniel: Ah, geralmente a pessoa que tem altas habilidades, na infância, tinha poucos amigos, comia sozinha no recreio e não conseguia conversar tão bem com outras pessoas da mesma idade, justamente por essa diferença da tríade e dos interesses. Ela está acima da média da idade dela, né? Então, não tem como interagir com outras pessoas da mesma idade de forma típica. É muito comum ver crianças com altas habilidades sofrerem bullying, serem excluídas e terem sentimentos que envolvem a solidão. São pessoas com tendência a serem mais vulneráveis a questões emocionais, como lidar com sentimentos, emoções e ansiedade. Justamente por não se sentirem pertencentes a lugar nenhum, né? Então, é meio contraditório no sentido da crença de que quem tem altas habilidades automaticamente consegue entender tudo muito facilmente ou que tem facilidade em adaptabilidade. No entanto, o indivíduo pode não conseguir se adaptar nesses ambientes mais sociais ou em outros contextos. Justamente porque, através dessa crença, se vê uma questão global, como se a pessoa com este diagnóstico fosse boa em tudo e não pudesse ser mediana em nada. E não é assim que funciona.

Gabriella: E não é uma questão de “super inteligência” também, né?

Daniel: Não, não é. E eu acredito que envolve tabu. Porque a tendência é que todos sejam na média ou até menos inteligentes que a média. Espera-se que as pessoas tenham inteligência na “média”. Quando aparece uma pessoa que tem, por exemplo, um QI mais alto, os pais, a própria escola e os funcionários têm reações do tipo: “Meu Deus. Nossa, tem um gênio aqui, vai ser o próximo Einstein. Tem que tirar 10 em tudo, ser excepcional em tudo”. E como eu disse, não é assim que funciona.

3. É possível estimular nossa inteligência?

Daniel: Sim, talvez não para inteligência fluida, mas para inteligência cristalizada, sim. Em que sentido? Olha, se você, por exemplo, fizer bastante quebra-cabeça ou aquelas tarefas que são mais de raciocínio lógico, não quer dizer que seu raciocínio vai estar mais rápido, mas você vai estar mais acostumado com aquelas atividades. Uma questão importante que envolve os testes: o ideal é o profissional aplicar o teste só uma vez na vida do paciente, porque há um fator de aprendizado. Nós, seres humanos, sempre vamos aprender, essa é a questão. Mas, em questão de inteligência fluida, não tem muito o que se fazer, é o que é e pronto. O que o neuropsicólogo faz é apenas a análise de dados em testes que envolvem essa inteligência. Agora, para a inteligência cristalizada, o famoso “sentar a bunda na cadeira”, estudar ou explorar, fazer coisas novas, ver coisas novas, conversar com novas pessoas, isso faz muita diferença. Então, o que acontece é que quem tem uma inteligência fluida mais avançada, digamos assim, vai compreender a demanda de cada atividade ou desafio de uma forma mais rápida que a média. É uma pessoa que pega um livro difícil, lê, compreende e não precisa voltar naquele livro, e aprende mais rápido mesmo, por isso cristaliza mais rápido, né? Não quer dizer que as pessoas típicas não consigam fazer isso. A diferença é que elas precisam de mais acompanhamento, vão ter que escrever e se exercitar muito mais do que uma pessoa com altas habilidades nesse sentido. Por exemplo, vão ler um livro e terão que voltar nesse livro outras vezes para compreender, talvez porque não entenderam um conteúdo específico, e na hora de cristalizar, não cristalizou, ou seja, não maturou, digamos assim. Voltando à linha de raciocínio: a questão da inteligência, pelo menos a inteligência cristalizada, essa tem como mudar, e ela faz toda a diferença. Por exemplo, quando um neuropsicólogo atende um paciente para fazer a avaliação neuropsicológica, é observado o comportamento como um todo, incluindo principalmente o desempenho e engajamento durante a aplicação dos testes. É comum observar, durante a correção dos resultados após a avaliação, que o paciente pode ter ido abaixo da média em testes que envolvem mais a inteligência fluida, mas, ao mesmo tempo, teve um desempenho na média ou acima da média em alguns testes que envolvem a inteligência cristalizada. E nesses testes, às vezes, existem perguntas amplas, que se entende que a maioria das pessoas já sabe. Então, se eu perguntar quem descobriu o Brasil e você me responder: Pedro Álvares Cabral. O valor da sua resposta condiz com o que já é esperado para sua idade. E também existem perguntas específicas nestes testes que a maioria nunca viu na vida e tá tudo bem. Então, para estimular a inteligência, faça atividades novas, explore, aventure-se em projetos novos e estude. É o melhor caminho para onde você pode ir para “ficar mais inteligente”.

Gabriella: Com certeza, e aqui acho que você trouxe uma ressalva importante. Estávamos falando agora há pouco de inteligência. A gente puxou esse conceito para um extremo ali da superdotação, né, mas não quer dizer que quem não é superdotado não tem inteligência ou não tem habilidades, né? Isso não tem nada a ver uma coisa com a outra.

Daniel: Exatamente, e, por exemplo, é muito comum você aplicar um teste e a pessoa que está com a classificação “Acima da Média” ser “Acima da Média" em tudo, é quase impossível pra não dizer imposível. Existe avaliação em que a correção parece mais ou menos assim: abaixo da média nisso, na média naquilo e mais nisso, acima da média nessa outra categoria, tá superior nisso e limítrofe nisso aqui, e por aí vai. Então, às vezes a inconsistência dos resultados pode acontecer, mas é muito difícil, por exemplo, você ser médio em tudo, superior em tudo ou abaixo em tudo. Se der superior em tudo, é base de estudo de caso, é do mesmo jeito que se for inferior em tudo também é estudo de caso, é o famoso ponto fora da curva total.